TEATRO - A TEMPORALIDADE E O DEVIR
"O teatro é um ato superior porque pode reabrir o espaço virtual das formas e dos símbolos, alimentando e expandindo os conflitos".
Um jogo de remitência mútua, em que o constituído se confunde com o constituinte, onde nada pode aparecer como acabado, como claro e distinto, como realizado. Conflito permanente entre o Uno e o Múltiplo, cujas operações simbólicas e físicas transbordam e lutam entre si. Nenhum acontecimento é irreversível e nenhuma transformação é final. Tudo começa de novo, a cada instante.
Como diz Nietzsche: "um jogo de forças e ondas de força ao mesmo tempo uno e múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando. Um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais simples e mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos, abençoando a si próprio como aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum, fastio, nenhum cansaço -: esse meu mundo Dionisíaco do eternamente criar-a-si-próprio, esse mundo de volúpia, esse meu para além do bem e do mal, sem alvo... vontade de potência.".
Reproduzir um ato de criação em devir permanente, onde a regeneração do tempo é continuamente efetuada através do rito, do mito. A repetição dos atos arquetípicos como um incessante ensaio dos mitos primordiais que, embora aconteça no tempo, não carrega o peso do tempo, não registra a irreversibilidade do tempo. Um presente contínuo, um presente atemporal. "O presente é aquilo que já foi e aquilo que virá-a-ser. O presente não é", observa Deleuze. O eterno vir-a-ser, repetição cíclica. "No eterno retorno ao caos do princípio, a regeneração da vida, do mundo, do cosmo", diz Mircea Eliade. Revezar-se de vida e morte. "A morte de um contrário é a vida de um outro e a morte deste é o retorno do primeiro à existência. Imagem do fogo, que se acende e se apaga na mesma medida. Imagem de um mundo em incessante mudança, onde nada permanece idêntico a si mesmo: o dia vira noite, o inverno vira primavera, o doce se torna amargo, o pequeno vira grande, o grande diminui, o quente esfria, o frio se aquece", comenta Heráclito.
"É paradoxal que em nossas vidas
"O caminho para cima e o caminho para baixo são um único e mesmo caminho. Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome", afirma Heráclito e confirma Lao Tse: "todos os opostos são polares e, dessa forma, unidos. Partes extremas de um único todo num processo vibratório de criação e destruição, movimento e repouso, existência e não existência."
"A dança de Shiva simboliza não apenas os ciclos cósmicos de criação e destruição, mas também o ritmo diário de nascimento e morte, constituindo a base de toda a existência e de todos os fenômenos naturais".
A contínua criação-destruição do universo, a morte equilibrando exatamente o nascimento, o aniquilamento como o fim de tudo aquilo que veio à existência. A dança de Shiva simboliza esse eterno ritmo de vida-morte que se desdobra em ciclos intermináveis.
"... mas para viver não há quase tempo nenhum. Porque viver ocorre a cada instante e esse instante está sempre mudando. Cada momento apresenta o que acontece."
É o tempo privilegiado em que o indivíduo não apenas se sente existir, como se sente mais verdadeiramente existir, onde o ser está livre para ser constituído.
É nesse tempo que se instaura o TEATRO.
"De um lado o teatro perdeu o sentido do sério e da eficácia perniciosa que consiste em manter todas as coisas em conflito, com sua negação radical, o PERIGO. De outro, perdeu o sentido do humor com sua força de dissociação física e anárquica"..."o sentido do humor e do perigo funcionam como forças em jogo na produção do imprevisto objetivo."
Um teatro contra o que na vida há de constituído, de manifesto e de fixo. Um além teatro, na medida em que pretende para si a eficácia da magia e do rito.
"Nosso mito emudeceu
Criar uma CENA VIVA. PRIMAL. Confrontação mítica e ritualística com a obra. Captação ancestral. Nos colocar em outros estados de consciência. Uma primeira via - que trabalha o sensível (a sensibilidade e não o emocionar-se), o intuitivo, a vivência. Insights, gestos, imagens, frases, estados de vivência mítica, fluxos de consciência. E uma segunda via - intelectual, racional, que dá campo de referência, rede de associações.
"A beleza na Arte dever ter a força
Encontrar a fonte viva do próprio teatro. "Proponho um teatro no qual imagens físicas violentas, triturem e hipnotizem a sensibilidade do espectador, que se vê no teatro, como presa de um turbilhão de forças superiores. Um turbilhão de vida que devora as trevas e tem o poder de transtornar e encantar. Um mal superior, porque é uma crise completa, após cuja passagem resta apenas a morte ou a purificação radical", observa Artaud.
"Parece que através da peste e coletivamente, um gigantesco abscesso tanto moral quanto social é furado; e assim como na peste, o teatro existe para abrir coletivamente os abscessos."
Há no teatro como na peste alguma coisa ao mesmo tempo vitoriosa e vingadora. O homem rebelado contra a fatalidade, se insurge contra ela e cria em função dessa revolta.
"A arte como a redenção do que conhece - daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-la, do conhecedor trágico.
O teatro nos desacorrenta. Dionísio que desacorrentava as mulheres e as possuía. "As possuídas de Dionísio." Deus da embriagues, da libertação, da supressão das proibições e dos tabus, deus das catarses e da exuberância. Deus das formas inumeráveis, fogo perpétuo, mutação perpétua, introduz na matéria movimento e energia. Dionísio está profundamente imerso no tempo: ritmo, música, embriaguês, orgia. Está sempre despedaçando (esquartejamento) para se refazer. Destruições e desaparecimentos, seguidos de retorno à vida e regenerações.
"Vamos ao teatro para nos evadirmos de nós mesmos, ou, caso se queira, para nos reencontrarmos naquilo que temos, não propriamente de melhor, mas de mais raro e de mais crivado."
Com esse teatro nós reatamos com a vida em lugar de nos separarmos dela, pois esse teatro é provocador de tudo aquilo que a vida dissimula ou não pode expressar.
"O homem reflete em si uma grande batalha. Esta não está só no consciente, mas no inconsciente, onde se dão os maiores encontros. Os impulsos negativos e os positivos chocam-se. O que o consciente às vezes recebe é simplesmente o resíduo dessas lutas que se travam nas sombras."
Para Grotowski, o teatro deve invocar e mostrar despido aquilo que a vida cotidiana encobre. O desvendamento do ator, que se fará não para o espectador, mas diante dele. Esse desvendamento baseado num esforço de total sinceridade, exige do indivíduo a aceitação de uma renúncia a todas as máscaras, "mesmo as mais íntimas". E essa sinceridade provoca um ENCONTRO entre ator e espectador, produzindo um efeito de abalo, que pode ser muito profundo e adquirir a força de um acontecimento do qual o espectador sairá transformado.
"Se ao desafiar-se publicamente a si mesmo, o ator desafia os outros e, através do excesso, da profanação e do ultraje sacrilégio se revela tal qual é, arrancando a sua máscara de todos os dias, ele permite ao espectador empreender um processo semelhante."
O teatro nos exige uma crueldade interna: " que nós nos reformulemos", observa Vera Felício. O teatro da crueldade é extremamente violento contra nós mesmos. Trabalha o auto-desnudamento, nos transforma - jorra sangue, metaforicamente.
"Jogamos nossa vida no espetáculo que se desenrola no palco; e para o espectador, seus sentidos, sua carne estão em jogo. Ele deve ser convencido
de que nós somos capazes de fazê-lo gritar."
Uma prática que se dá no presente, no imediato - o ato. O TEMPO pressentificado no ato imediato, o tempo "Aion", segundo Deleuze, onde "passado e futuro são ilimitados e recolhem à superfície os eventos incorporais, enquanto efeitos." Não existe "antes" e "após", por isto, inexiste causalidade. Uma coexistência simultânea que não permanece estática, mas torna-se um continuum vivo.
"Cada algo é a celebração de um nada que o carrega."
É a ampla vida de um silêncio extremamente povoado. É entrar no deserto para saber que o deserto é vivo. Reservatório de possibilidades infinitas. Não é a presença da morte na vida que faz de seu centro um vazio, pois vida e morte são apenas duas faces da força multiplicadora da criação. E sim que "a vontade de produção do duplo se dá sempre no limite de sua impossibilidade; ou melhor, toda produção de força vital exige - provoca e é provocada - pelo Nada", observa Artaud.
É a roda infinita do Devir, onde o caos é condição necessária da produção da forma. Desconstruir, descentrar, desintegrar - construir, equilibrar, integrar: movimento contínuo do vir-a-ser. Espiral. Imaginação dinâmica. Esfera das virtualidades, do não-sentido. O ir-se abrindo e se metamorfoseando.
"O primeiro algo nos lança dentro do nada e desse nada surge o algo seguinte... como uma corrente alternada.
São várias as experiências teatrais que buscam vivenciar essa temporalidade. Cito algumas:
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E é Mircea Eliade que diz: "é em momentos como o da luta, do combate, que o homem se sente mais intensamente, efetivamente viver - em cada gesto meu, preciso ter plena consciência do que estou fazendo, de que estou vivo, para continuar vivo - e assim, por um instante, pelo menos, o gesto é intensificado, pressentificado, construído ao máximo." Espaço do pré-sentido, da mera possibilidade. A cena primeira, da Primeiridade. Primeiridade do possível, do imediatamente possível, em que se fundem o real e o imaginário. Um Portal do Tempo e do Espaço - Teatro. Ao atravessar esse limiar - a porta - entramos para a comunidade dos que vêem. Lá, onde o mundo é corpo humano, olhar humano, sopro humano. Lá, onde se torna possível a comunicação com os deuses. Portal do Tempo e do Espaço. Um tempo e espaço sagrado. Forte. Significativo. Um tempo de Festa, onde o acaso nos reune numa mesma sala, fora do tempo do cotidiano e entramos em uma outra ordem, um outro universo.
"Procuro na agitação das massas, um pouco dessa poesia que se encontra nas festas e nas multidões naqueles dias, hoje bem raros, em que o povo sai às ruas."
Festa. Rito. Mito. Eterno Retorno. ( por Cristina Tolentino - e-mail: cristolenttino@yahoo.com.br ) OBS: Dedico este artigo a Vera Felício, minha Mestra na USP, por ocasião do meu mestrado.
Bibliografia:
Peças Teatrais: |