EUGÊNIO BARBA E O TEATRO ANTROPOLÓGICO

4. TERCEIRO TEATRO: a herança de nós para nós mesmos.

"O Terceiro Teatro indica um modo de modelar os próprios "porquês". Não é um estilo teatral, nem uma aliança entre os grupos, tampouco é um movimento ou corporação internacional, nem uma escola, nem uma estética ou uma técnica.".

Barba diz que Louis Jouvet fez uma afirmação que ressoou como um enigma: "Existe uma herança de nós para nós mesmos.".

A partir desta afirmação ele levanta algumas perguntas essenciais:

  • ainda possuo em minhas mãos a herança que eu mesmo construí?
  • conheço ainda seu valor ou também isto foi corroído pelo tempo, pela prática da profissão, pelo retorno ao centro esmagado do planeta teatral?


    "Quem é você?" "Um ator". "Sim, mas quem é você?"
    Estepáculo de rua, Perú, 1978

  • Ele diz que este enigma e estas perguntas pertencem ao "terceiro teatro".

    "Quando Jouvet falava da herança de nós para nós mesmos, reassumia o sentido de muitas histórias que haviam mudado o espírito do teatro no século XX. Eram histórias de pessoas, não de instituições. Eram histórias de estrangeiros no teatro. Quem são estes estrangeiros? Frequentemente em nossos discursos surgem nomes de "mestres" e "pais fundadores": Craig, Stanislawski, Copeau, Brecht, Artaud, Meyerhold, Grotowski e alguns poucos mais." Barba nos fala que todos estes mestres entraram no teatro levando uma "nostalgia" pessoal, diferente para cada um deles: a religião, a anarquia, a revolução, o tempo do homem novo e uma inextinguível rebelião individual. Eles construíram a partir desta nostalgia e também, das deficiências: "Stanislawski não conseguia se aceitar como ator; Artaud não conseguia concretizar suas visões; Brecht não sabia viver sem uma ortodoxia, mas ao mesmo tempo não conseguia adequar sua prática artística carregada de individualismo e anarquia a essa ortodoxia." Construíram a partir daí um sentido autônomo para a ação de fazer teatro. Todos estes mestres, quando se arriscaram em um terreno desconhecido, ainda não possuíam fama suficiente para se resguardarem, mesmo assim resistiram à força centrípeta do planeta teatral. Resistiram à tentação de "estabilidade", de "segurança" que o centro do planeta teatral parece assegurar. Inventar o sentido da própria ação de fazer teatro implica, segundo Barba, "vontade e capacidade de distanciar-se dos valores no auge do centro do planeta teatral e força necessária para penetrar na órbita dos anéis." É esta força que manteve e mantém vivos os grupos teatrais que, com sua longevidade, nos faz refletir sobre a busca de sentido, ou seja, o descobrimento pessoal do ofício. E Barba nos diz que a eficácia desse ofício transforma "uma condição em uma vocação pessoal e aos olhos dos demais, em um destino que é uma herança".


    "Troca na Colômbia", 1984.
    O Odin Teatret junto com um grupo de meninos de rua.

    Sobre o sentido do ofício, Barba ainda nos fala: "ofício quer dizer a construção paciente de uma própria relação física, mental, intelectual e emotiva com os textos e com os espectadores, sem uniformizar-se com os modelos que regulam as equilibradas e convalidadas relações vigentes do centro do teatro. Quer dizer, compor espetáculos que saibam renunciar ao público usual e saibam inventar os próprios espectadores.

    Tudo isso é ofício: técnica do ator, da cena, da dramaturgia, competência administrativa. Só um pequeno resto é força de ideal e espírito de rebelião." Mas este pequeno resto é o que Barba diz ser o essencial e tem a ver com uma parte de nós sujeita a "contínuas obnubilações, a períodos de silêncio, de cansaço - um mar fértil e tenebroso que, às vezes, parece inundado de luz e, outras, nos assusta e se reduz à infecunda amargura do sal" (...) "cada um deveria ser capaz de traduzir estas metáforas à sua linguagem pessoal".

    Cristina Tolentino ( cristolenttino@yahoo.com.br )

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