JERZY GROTOWSKI E O ATOR PERFORMER

4. ARTE COMO VEÍCULO

Em 1985, na Itália, começou a trabalhar no que veio se chamar "Artes Rituais" ou "Arte como veículo", no Workcenter em Pontedera - "um trabalho concentrado sobre o rigor, os detalhes, sobre a precisão, comparado com os espetáculos do Teatro Laboratório. Mas não é uma volta ao teatro como representação. No Workcenter um pólo do trabalho é concentrado à formação, no sentido de educação permanente: os cantos, os textos, as ações físicas, os exercícios plásticos e físicos para os atores. O outro pólo á a Arte como veículo ou Objetividade do Ritual ou Artes Rituais. "Quando falo do ritual", diz Grotowski, "não me refiro a uma cerimônia nem a uma festa; tampouco à improvisação com participação do exterior (como no Teatro das Fontes). Não falo de uma síntese de diferentes formas rituais de diferentes lugares. Quando me refiro ao ritual, falo de sua objetividade - digo que os elementos da ação são os instrumentos de trabalho sobre o corpo, o coração e sobre a cabeça dos atuantes. Trabalhamos sobre o canto, os impulsos, as formas do movimento e ainda podem surgir motivos narrativos. E tudo reduzido ao estritamente necessário, até criar uma estrutura precisa e acabada como um espetáculo: ação."


Akropolis: Esaú (Ryszard Cieslak) entoa um louvor à liberdade da vida do caçador. Foto Teatro-Laboratório.


O príncipe Constante

Ainda sobre este trabalho, Grotowski nos diz:
"Pode-se perguntar: qual é a diferença entre esta objetividade do ritual e o espetáculo?, ou seja, qual a diferença entre espetáculo teatral e Arte como veículo?

Uma primeira diferença está na base da montagem. No espetáculo a base da montagem está no espectador. Na Arte como veículo, a base da montagem está nas pessoas que fazem, nos artistas mesmos. Um exemplo de montagem centrada no espetáculo: "Príncipe Constante interpretado por Ryzard Cieslak. Durante meses e meses o ator trabalhou só comigo. Nada em seu trabalho estava ligado ao martírio que na peça de Caldéron/Slowacki era o tema do personagem. Toda a torrente da vida do ator estava ligada a uma recordação feliz, as ações pertenciam a essa recordação precisa de sua vida, as mais pequenas ações e impulsos físicos e vocais desse momento rememorado. Foi um momento de sua vida ligado ao tempo amoroso de sua adolescência. Este adolescente rememorado se liberava com seu corpo, se liberava passo por passo do peso do corpo, de todo aspecto doloroso. Através da multidão de detalhes, de todos os pequenos impulsos e ações ligadas a esse momento de sua vida, o ator encontrou o fluxo do texto.

Porém, a lógica do texto, a estrutura do espetáculo sugeria que fosse um prisioneiro martirizado e que se mantém fiel à sua verdade até o final. E é através desse martírio que chega ao cume.

Esta era a história para o espectador, porém não para o ator. Ao redor do ator, outros personagens vestidos como fiscais de um tribunal militar se associavam à Polônia daquele tempo (1965). Porém, evidentemente, esta não era a chave (o fundamental era toda aquela narração em torno do ator que interpretava o Príncipe Constante) que criava a história de um mártir: a estrutura do texto escrito e o que foi mais importante - as ações dos outros atores, os quais por sua vez, teriam suas próprias motivações. Ninguém queria representar, por exemplo, o fiscal militar; cada um teria coisas próprias ligadas à sua vida, estritamente estruturadas e colocadas em forma da história, segundo Caldéron/Slowaski.

Então, de onde apareceu o espetáculo? De certa maneira, toda esta totalidade (a montagem) apareceu não sobre a cena e sim na percepção do espectador. O que o espectador captava era a montagem em si e o que os atores faziam era outra história."

E continua Grotowski: "Fazer a montagem na percepção do espectador não é dever do ator e sim do diretor. O ator deve buscar liberar-se da dependência do espectador, se não quiser perder dentro de si a semente da criatividade. Fazer a montagem na percepção do espectador é dever do diretor e é um dos elementos mais importantes do seu ofício."

Sobre a Arte como veículo, Grotowski diz: "Quando falo da Arte como veículo, me refiro a uma montagem onde a base não está na percepção do espectador e sim em quem faz. Não se trata de colocar-se em acordo verbal entre os diferentes atores sobre qual será o tipo de montagem; não se trata de compartilhar a definição do que fazem. Nenhum acordo ou definição verbal; é através das ações que há que descobrir como um se aproxima, passo a passo, até chegar a um consenso. Neste caso, a base da montagem está nos atores." E exemplifica: "O espetáculo é como um grande elevador no qual o ator é o operador. No elevador estão os espectadores. O espetáculo os transporta de uma forma de evento a outro. Se este elevador funciona para os espectadores, digo que a montagem esteve bem executada.

A arte como veículo é como uma forma antiga de elevador que é uma espécie de quindaste movido por uma corda, com a qual ao atores sobem através de uma energia sutil, para baixar com ela, até nosso corpo físico. Isto é a objetividade do ritual.

Quando falo da imagem do elevador primordial e a Arte como veículo, me refiro a verticalidade - podemos ver esta verticalidade em categorias energéticas - energias pesadas, porém orgânicas (ligadas às forças da vida, aos instintos, a sensualidade) e outras energias, mais sutis. Mas não se trata simplesmente de trocar de nível, senão de levar o grosseiro ao sutil e trazer o sutil até a realidade mais ordinária que está ligada à densidade do corpo. É como se entrássemos em alta conexão."

Grotowski deixa claro que não se trata de renunciar à nossa natureza; tudo deve ter seu lugar natural,ou seja, o corpo, o coração, a cabeça, algo que está por debaixo dos nossos pés" e algo que está "acima da cabeça". Uma verticalidade que deve estar tensionada entre organicidade e consciência. Consciência aqui não ligada à linguagem, à máquina de pensar e sim à Presença.

Se se busca a Arte como veículo, "a necessidade de chegar a uma estrutura que pode ser repetida, chegar, por assim dizer, à "obra de arte - é algo maior que no trabalho sobre um espetáculo destinado ao espectador".

Grotowski nos diz ainda que o ator não pode trabalhar sobre si mesmo, se não está dentro de algo estruturado que seja possível repetir, que tenha princípio, meio e fim, onde cada elemento tem seu lugar lógico, a estrutura elaborada em detalhes - a ação que é a chave. Se falta uma estrutura tudo se dissolve e se torna uma sopa emotiva. A respeito disso ele diz: "assim trabalhamos nossa obra de arte: ação. O trabalho organizado como os ensaios têm oito a quatorze horas por dia, seis dias por semana e dura anos, de maneira sistemática."

Só assim, diz ele, se chega a algo visível e que tem "uma estrutura comparada a um espetáculo, porém não busca criar a montagem na percepção dos espectadores e sim nos artistas que fazem."

Cristina Tolentino ( cristolenttino@yahoo.com.br )

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