Yeda Prates Bernis - escritora






pendula

Pêndula
Yeda Prates Bernis
Editora Massao Ohno, SP - 1983
15 x 22 cm
Editora Itatiaia - 2ª edição - 1986
13 x 18 cm - 80 páginas

Capa: Mark Rothko

PREFÁCIO:

O PROJETO DE YEDA

Para caracterizar a situação do professor de literatura, acostumado ao demorado exercício analítico do texto literário, já se cunhou uma expressão bastante significativa: a angústia do paradigmático, com que se procuram definir o esforço e a acuidade necessários para se descobrir, no texto, um conteúdo latente que apenas se insinua na sua face visível.

Para falar desse Pêndula, de Yeda Prates Bernis, o centro de gravidade dessa angústia desloca-se. Primeiro, porque o livro - o quarto que Yeda publica - traz uma estrutura que é um convite a um mergulho em profundidade nos seus textos. Segundo, porque circunstâncias especiais nos fizeram conhecê-lo ainda nos originais, nascendo desse encontro ocasional um fascínio que nos ligou irreversivelmente a ele. Terceiro, porque à perspectiva de trabalhar os poemas de Pêndula com a acuidade critica que eles reclamam, vemo-nos forçados a substituir a angústia do paradigmático pela angústia do espaço a que nos devemos limitar.

A julgar pelos livros anteriores e, principalmente, pelos poemas de Pêndula, observa-se que a obra de Yeda Pratas Bernis delineia-se como um pro jectum, no sentido de que ela é um constante lançar-se à frente de si mesma, conseqüência de um trabalho na linguagem que, associando-se à temática de cada poema, cresce por aluvião.

Nessas condições, os versos de Pêndula alcançam um refinamento arquitetônico que revela o fazer poético em si, decorrência natural da elaboração linguística que tem por lei afirmar a especificidade do discurso da poesia. É este o momento em que a palavra, desfazendo-se como simples registro de fatos e acontecimentos, afasta a discursividade, para tornar-se processo de reconstrução estética.

Trabalhando as palavras, naquela atividade diversória a que se refere Norman Brown, Yeda consegue fazer da poesia um jogo em que se destaca uma grande capacidade de síntese, como no admirável poema "Violência", escrito com sete palavras que põem em destaque realidades que se entrecruzam através dos discursos mítico, ideológico e tecnológico. Essa simplicidade vocabular, de cuja magia desentranha-se um universo humano, consegue reverter o falso ouro de uma tradição literária que insiste em ressaltar o sujeito criador como ser misterioso e privilegiado. Nos exemplos de Pêndula, é possível descobrir-se como o criador se anula diante de sua criação, sendo notável o fato de que isso ocorra numa obra de profunda indexação lírica. Para comprová-lo, basta ler o "Colheita", em que a vida, "virada ao avesso", vai corresponder justamente àquilo que Carlos Montemayor reconhece como a verdadeira poesia. Poesia em que o autor, metamorfoseando-se em palavras, torna-se um eu poético que é a transfiguração panteísta ou proteica de toda a experiência humana, através da "encarnação léxica da miséria e da anulação humana na vida contemporânea".

A consciência crítica, outro traço detectável claramente na poesia de Yeda, também está presente em Pêndula: como, por exemplo, na declarada ironia do poema "Poética", em que a literariedade simula refugar a poesia, num artifício que tem como objetivo fazê-la representante desse espetáculo grandioso que é a vida; ou na originalíssima focalização da díade langue / parole, que os manuais de linguística expôem com tanta aridez, e que o poema "Fala" oferta com refinada sutileza.

A par dessa consciência critica, o trabalho de análise pode penetrar ainda mais fundo no pro jectum de Yeda. No poema "Ausência", por exemplo, é possível perceber, ao lado do profundo conteúdo lírico, o discurso poético textualizado como rampa de lançamento do discurso metapoético. Basta comparar. Sabe-se, através da discursividade teórica, que a língua não existe em si, sendo apenas uma abstração. Contudo, é ela que condiciona toda e qualquer fala humana, pois está presente nas manifestações concretas de cada ato linguístico efetivo. Ela é, pois, uma presença ausente, uma vez que é a sua ausência que determina internamente a presença da fala. Essa formulação instala-se num nível latente no poema "Ausência", na medida em que se pode perceber que é a ausência do ser amado que propicia o acionamento dos mecanismos da linguagem que operam no sentido de produzir o texto. E este, ao adquirir "status" linguístico, entreabre-se como coisa ofertada, para revelar não apenas o seu processo criador, mas também para revelar-se como uma praxis que desinterdita o desejo, elevando-o à segunda potência da linguagem.

Essa tessitura do discurso literário recobre-se de profunda significação quando se percebe a intertextualidade que nele se opera. A partir da chamada epigráfica do Eclesiastes, que abre o livro ("Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus"), pode-se perceber a multiplicidade de falas que irão detonar o sentido de Pêndula.

Do primeiro ao último dos poemas, descolam-se inúmeros discursos, uma vez que o trabalho sobre a linguagem conduz a ficção poética ao fato social, operando-se a intertextualidade no sentido que Bakhtine pôs em circulação, ou seja, o escritor "situa o texto na história e na sociedade, encaradas por sua vez como textos que o escritor lê e nas quais ele se insere ao reescrevê-las". O discurso político-social é nítido em alguns poemas, como "Sabedoria", "Violência", "Presépio Moderno", "Dança", "Existência" e "Ritual, mas instala-se como um todo ao longo do livro, perceptível através de um tom revolucionário, no sentido de que se revela como uma inquietação que busca apaziguar-se através do apelo à transcendência.

Esse aspecto revolucionário dos textos de Yeda origina-se de uma dialética interna, explicável através da formulação com que Gilles Deleuze aponta o hiato que se estabelece entre a totalidade social e os avanços, do progresso técnico. Uma sociedade, qualquer que seja, tem todas as suas regras - políticas, econômicas, religiosas, morais - dadas ao mesmo tempo, enquanto que a conquista da natureza em que ela se estabelece faz-se progressivamente. Esse desequilíbrio é que força as reorganizações da totalidade econômica e política em função dos avanços do progresso técnico. Aí, dá-se o aparecimento de três figuras: a do tecnocrata, que pretende adaptar, intermitentemente, as relações sociais ao ritmo das aquisições técnicas; a do ditador, que pretende condicionar o que deve ser conhecido à totalidade social existente, e a do revolucionário, que procura preencher o abismo que separa o progresso técnico e a totalidade social com o seu sonho de revolução permanente. E se esse sonho, como diz Deleuze, é, ele próprio, ação e realidade, também é verdade que a obra literária, como discurso orientador e, ao mesmo tempo, substituidor da realidade, possibilita a realização desse sonho, na medida em que ela produz uma visão critica do real supostamente conhecido.

Em Pêndula, a revolução que se pode detectar aparece como uma inquietação que procura encontrar, na ânsia de transcendência, a síntese para a dialética que se estabelece visivelmente nos textos citados. E essa transcendência desdobra-se magnificamente em poemas como "Colheita". "Exercícios", "Viagem", "Sudário", "Abandono", "Pinceladas", "A Alma", "A Graça" e "Concertos de Brandenburgo". E na inquietação que Yeda procura inscrever o seu sonho revolucionário, e, como "encarnação léxica da anulação humana na vida contemporânea", procura encontrar o tempo da transcendência, da mesma forma que o Eclesiastes, sobre o qual se enforma o livro, encontra, para tudo um tempo, e, para cada coisa, um momento debaixo dos céus.

Audemaro Taranto Goulart




POEMAS:

COLHEITA

No tempo que não existe
revolvi meu chão de ânsia
com mãos de seda e inocência.
Adubei com imprudência
de fé, paixão e constância
a terra desta certeza.
Semeei minha verdade
no futuro da alegria.
Reguei com fresca poesia
o que fruto me daria.
No tempo que não existe
- primavera em calendário -
espantalho solitário
sem rumo, sem endereço,
colho a safra da agonia,
recolho a vida ao avesso.




ABANDONO

A derradeira porta
é verde - último suspiro.
Abro-a, sem pressa,
que o corpo é carne
onde a alma nem respira:
palavras natimortas
espalhadas no chão.

Recolho-as ao colo
e me deixo estar.


 

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