Crônica Clementina de Jesus
Crônicas Musicais

Crônica Clementina de Jesus

CLEMENTINA DE JESUS – lançou seu primeiro álbum aos 63 anos de idade!!!

Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste

Arrisco a afirmar que se não tivesse havido Clementina de Jesus não teríamos uma cantora do porte de Clara Nunes. Clementina é raiz, é matriz, é o sumo do caudal dos povos africanos que chegaram no Brasil trazidos pelos infames navios negreiros. E vou mais além: sem Clementina não teríamos Milton Nascimento.

Clementina é relegada aos porões da memória nacional. É deixada no limbo, até que um jornalista bem-intencionado a “redescubra” e venha produzir algum especial trazendo luz sobre a vida e obra dessa grande artista. Depois, ela torna a ser esquecida. Se eu fosse ministro da cultura, senador, presidente da República, qualquer coisa do gênero, iria criar o Dia da Música Popular Brasileira de Raiz, no qual bambas como Clementina de Jesus, João do Vale, Gonzagão, Donga, Cartola, Pixinguinha e outros mestres, teriam que tocar o dia inteiro em todas as mídias para o conhecimento e o deleite de todas as gerações.

Seguindo a cartilha de Noel Rosa de que “samba não se aprende no colégio”, CJ é a pura voz da intuição. Sabemos que seu pai, Paulo Batista dos Santos, foi mestre de capoeira, violeiro e pedreiro. Com a mãe, Amélia de Jesus dos Santos, parteira, Quelé (carinhoso apelido de Clementina) aprendeu os cantos de trabalho, partido-alto, ladainhas, jongos e pontos de candomblé.

Diferentemente do tom agudo utilizado pelas famosas “divas do rádio” que brilharam na primeira metade do século XX no Brasil (Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Emilinha Borba, Marlene, Elizeth Cardoso, entre outras) a cantora negra CJ tinha um timbre de voz grave, mas com grande extensão e um repertório de músicas afro-brasileiras tradicionais.

Até os quinze anos, Clementina participou do grupo de Folia de Reis de seu João Cartolinha. Foi ele, João, quem a levou para a Escola de Samba Portela, onde ocorriam as rodas de samba. Lá, Quelé conheceu grandes craques como Paulo da Portela, Claudionor e Ismael Silva. Nesse tempo, a voz de Clementina já chamava a atenção e ela foi convidada por Heitor dos Prazeres para ensaiar suas pastoras. Quelé casou-se com Albino Pé Grande e foi morar no Morro da Mangueira, de onde não saiu mais. Ao longo desses anos CJ trabalhou como lavadeira e empregada doméstica. Sua atividade de cantora ela exercia sem intenções profissionais, cantava porque era preciso cantar, por prazer e por alegria.

A carreira profissional de Clementina de Jesus como cantora começou aos 63 anos, depois que o produtor e compositor Herminio Bello de Carvalho a encontrou numa festa na Penha, quando ela cantava na Taberna da Glória. Hermínio ficou fascinado pela sambista e passou a ensaiá-la em sua casa, preparando-a para o espetáculo Rosa de Ouro, show que a consagraria.

Nos anos seguintes Clementina participou dos discos Mudando de Conversa, Fala Mangueira! e Gente da Antiga, este último um disco antológico da música brasileira, ao lado de João da Baiana e Pixinguinha. No continente africano, participou do encontro das artes negras de Dakar em 1966, ao lado de Martinho da Vila. Clementina foi o maior sucesso do festival e grande destaque. Ao final do show da cantora as pessoas invadiam o palco para abraçá-la, contou Sérgio Cabral. Também no mesmo ano ela representou a música brasileira no festival de cinema de Cannes, na França.

Naquele mesmo ano de 1966, Clementina gravou seu primeiro disco solo, intitulado Clementina de Jesus, com repertório de jongo, sambas e partido-alto. A capacidade de CJ de transmitir poderosa emoção através do canto chamou a atenção dos críticos, que, de novo, renderam-se aos encantos de sua voz. Também Milton Nascimento, fascinado pelo banzo (podemos aqui pensar em blues) de Clementina, convidou a cantora para participar de seu disco chamado Milagre dos Peixes gravando a excepcional faixa Escravos de Jó.

Ao todo a cantora gravou 13 LPs entre álbuns solos e participações em álbuns coletivos, com destaque para o disco O Canto dos Escravos, composto de vissungos (cantos) de escravos da região de Diamantina, recolhidos por Aires da Mata Machado. O sambista Candeia compôs uma canção em homenagem à Rainha Quelé chamado “Partido Clementina de Jesus”, que a cantora gravou ao lado de Clara Nunes em 1977 no LP “As Forças da Natureza”.

Em 1983 houve uma grande homenagem à cantora no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com participação de grandes sambistas como Paulinho da Viola, Beth Carvalho e João Nogueira. Clementina faleceu, vítima de derrame, em Inhaúma, Rio de Janeiro, no ano de 1987, aos oitenta e seis anos. Sua voz e sua arte se imortalizaram: Clementina de Jesus, forever! (para sempre!)

Documentário Clementina de Jesus – Rainha Quelé – de Werinton Kermes https://vimeo.com/301702668

“Quelé — A voz da cor: Biografia de Clementina de Jesus”, de Janaína Marquesini, Luana Costa, Raquel Munhoz e Felipe Castro (Civilização Brasileira)

Ilustração de CJ – Elifas Andreato

Revisão: Hilário Rodrigues

Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas

Portal cultural Caleidoscópio: siga @caleidoscopiobh

Para ler mais crônicas, acesse: https://www.caleidoscopio.art.br/category/cultural/cultural-musica/cronicas-musicais/

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