HERMETO PASCOAL – “Música para mim não é trabalho, é devoção”
Crônica da Era do Rock, por Rodrigo Leste
Estive próximo do “bruxo” Hermeto Pascoal em um restaurante em BH. Costumo ter a cara de pau de me aproximar de um mestre como ele e tentar trocar algumas palavras. Mas, nesse caso, respeitei o sagrado direito do cidadão de poder comer em paz. E, a bem da verdade, não sei se teria muito a dizer, ou perguntar, a um artista cuja obra dispensa comentários; brilha sempre com muita luz.
O autodidatismo do albino Hermeto tem razões práticas: ele é quase cego, o que o impediu de ter contato com a leitura musical. Começou tocando a sanfona de oito baixos do pai, isso ainda em Alagoas, no município de Lagoa da Canoa, onde nasceu há quase 90 anos. Curiosidade: não foi trabalhar na roça porque não podia pegar sol. Ia para a roça em um carro de boi com seu pai e ficava deitado à sombra de uma árvore, ouvindo passarinhos.
Aprendeu a tocar acordeon junto com o irmão José Neto tocando na harmônica de oito baixos do pai, que a deixava em casa para ir trabalhar. Os dois passaram a revezar-se tocando acordeon em festas de casamentos, batizados e bailes ao ar livre, debaixo de árvores. Os chamados bailes de pé-de-pau, comuns no Nordeste e no Norte. O pai chegou a vender duas vacas para poder pagar um acordeon de 32 baixos para os filhos. Em 1950, a família mudou-se para Pernambuco.
No Recife conheceu outro sanfoneiro, também albino, Sivuca. Os dois, mais o irmão de HP, José Neto, formaram o Trio “O Mundo Pegando Fogo”. Pouco mais velho, Sivuca foi fundamental para a ampliação do repertório dos irmãos.
Hermeto seguiu os passos de Sivuca e pelos anos de 1960 se mandou para o sul maravilha. Tocou em todo o tipo de lugar, muitas boates e bares do Rio e São Paulo até formar o seu grupo, Quarteto Novo, que era composto por Theo de Barros (contrabaixo e violão); Heraldo do Monte (viola e guitarra); Airto Moreira (bateria e percussão) e Hermeto, tocando quase tudo. Reza a lenda que o primeiro álbum do Quarteto Novo (1967) foi ouvido com admiração pelos Beatles.
A banda durou apenas dois anos e Hermeto, atendendo o convite de Airto Moreira, foi para os EUA. Através do mesmo, AM, Hermeto teve um mítico encontro com o grande Miles Davis. HP conta o causo:
—“Fui na casa dele (Miles Davis) com o meu violão, e mostrei muitas coisas pra ele. Ele ficou maluco! Falou: ‘Ah, se eu pudesse eu gravava tudo’. Aí, eu falei [para o Airto traduzir]: “Fala pra ele que eu vou gravar um disco aqui e mesmo se ele quisesse gravar todas, eu não ia deixar. Seriam duas, três, que eu escolheria’. Aí o Airto Moreira falou pra ele, ele riu e me chamou de doido. Albino louco! Ficamos com uma amizade muito maravilhosa. Senti que nós éramos dois irmãos espirituais, que só faltavam se encontrar aqui na Terra pra se abraçar.”
Em 1971 Miles Davis gravou Live-Evil, um dos álbuns mais importantes de sua carreira. Três músicas de Hermeto fizeram parte do disco, mas a autoria das composições não lhe foi creditada quando o disco foi lançado. Posteriormente foi feita a correção e a amizade entre os dois músicos prosperou. Na mesma época, Airto conseguiu um contrato para gravar seu primeiro disco solo, Natural Feelings (1970). Hermeto participou ativamente da gravação desse LP, bem como do seguinte de Airto: Seeds On The Ground (1971). Em Los Angeles, Airto e Hermeto ainda gravaram o disco Cantiga de Longe (1970), de Edu Lobo, cujos arranjos são de Hermeto.
Na Nova Iorque de 1970, Airto e Flora produziram Hermeto, disco de exuberância orquestral, marco zero da discografia solo daquele prodigioso desconhecido, que não contava para os músicos que aqueles eram seus primeiros arranjos, porque sabia que não iam acreditar. Lançado pelo selo Buddah Records, Hermeto conta com a participação de nomes como Joe Farrell, Thad Jones e Ron Carter, que é um dos maiores baixistas de jazz de todos os tempos. Aliás, foi ele quem arregimentou a orquestra.
Em maio de 2023, recebeu título de Doutor Honoris Causa da Juilliard School, de Nova York (EUA). O título foi entregue pelo trompetista norte-americano Wynton Marsalis, que fez discurso mencionando o fato de Hermeto usar bossa-nova, baião, choro, maracatu, frevo e jazz no improviso, além de usar objetos comuns, do dia a dia, como instrumentos musicais.
Agora passo a bola pro amigo Hilário Rodrigues, revisor e consultor mor dessas crônicas que vai contar um causo. Fala, Hilário:
— Há muitos anos, lá na adolescência, meu falecido irmão, Weber, estudava num colégio na Vila Maria chamado Paulo Egydio. Um celeiro de jovens dedicados à arte. Meu irmão fazia parte do grêmio de alunos. Certa vez eles conseguiram levar para tocar lá o Hermeto. Imagina, o Hermeto! E eu estava lá, apesar de não estudar naquela escola. O cara foi sensacional, um show sensacional, num teatro muito simples, porém cheio de jovens. No final da apresentação Hermeto pega um banquinho que estava num canto e começa a tocar no banco, tirando um tremendo som da madeira. Foi incrível o show de banco que ele deu! Além disso, o cara foi supersimpático com todos. Até hoje sou fã incondicional desse músico sensacional, o grande Hermeto Pascoal!
Para quem quiser saber mais sobre HP, indico o livro “Quebra Tudo – A Arte Livre de Hermeto Pascoal”, escrito pelo jornalista paulistano Vitor Nuzzi. É uma obra resultante de mais de 50 entrevistas e muita pesquisa. Nuzzi, também autor de “Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida”, finalista do Prêmio Jabuti de 2015.
Concluo relembrando os versos de Caetano Veloso na canção Podres Poderes sobre o Bruxo: “Será que apenas os hermetismos pascoais/ os tons, os mil tons/ seus sons e seus dons geniais/ nos salvam, nos salvarão dessas trevas/ e nada mais”
Colaboração:https://rocinante.com.br/artistas/hermetopascoal/
Pitaco no texto e revisão: Hilário Rodrigues
Colaboração midiática: @rodrigo_chaves_de_freitas
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