Adaptação de romance de Saramago chega ao palco do Galpão Cine Horto
Há calamidades que não fazem barulho — apenas fecham os olhos do mundo. É o caso da cegueira branca de José Saramago, fabulada no romance ‘Ensaio sobre a Cegueira’, publicado em 1995. A obra, que enfileira vírgulas e pessoas em travessia desordenada, ganha, nesta semana, uma adaptação teatral do Grupo Galpão, que estreou na quarta-feira (30/4), às 20h, no Galpão Cine Horto. Mais que plateia, a peça pede testemunhas capazes de enxergar o que a luz não revela.
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”, aponta Saramago na obra que o direcionou até o Prêmio Nobel de Literatura em 1998. A afirmação vem acompanhada de rico conselho: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Observador, Rodrigo Portella, dramaturgo e diretor da nova peça do Galpão, acredita que a mensagem serve de alerta para a humanidade — uma espécie de aviso que extrapola a individualidade, diferentemente do que primeiro se imagina.
“Pra mim, o ponto central da obra do Saramago é a proposição que ele faz para uma maior noção da coletividade, o senso de comunidade que a gente foi perdendo ao longo dos milhares de anos”, diz Portella.
No livro, uma epidemia de cegueira assola a cidade, privando seus habitantes de enxergar o mundo como antes. Tudo começa com um homem no trânsito, repentinamente cego. Rapidamente a condição se espalha e coloca à prova a moral, a ética e as noções de coletivo. “De certa forma, ele cria uma distopia para chamar nossa atenção quanto a isso”, esclarece o diretor da adaptação.
Galpão, em grupo
O senso de coletividade questionado pelo autor português não só se materializa no palco, mas dialoga com o espírito do grupo convidado para interpretar a peça. “Quando eu comecei a elaborar a obra, uma coisa eu não perdia de vista: eu não queria criar uma peça para fazer com qualquer outra companhia, eu queria uma peça para o Galpão e com o Galpão”, revela Portella. “São nove pessoas em cena com uma potência que, com certeza, tá mais no conjunto do que nas interpretações individuais”, antecipa.
Cofundador da companhia de teatro e um dos atores da adaptação, Eduardo Moreira reforça a parceria do conjunto que, embora caminhe junto há longa data, “está sempre em construção”. “Nós nos colocamos como aprendizes, nessa perspectiva, num processo profundamente libertador, que revela nossos limites, ao mesmo tempo em que nos convida a viver novas experiências de risco e experimentação, não só entre nós, mas, também, na comunhão com o público”, afirma.
Além de Eduardo, o elenco reúne Antonio Edson, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones, todos já conhecidos dos palcos mineiros. Em contraponto, a novidade recai sobre o público, que terá a oportunidade de participar da encenação ao comprar o ingresso ‘experiência’. A categoria é destinada exclusivamente para pessoas com 18 anos ou mais.
“Nessa onda de criar uma noção de comunidade mais forte entre atores e espectadores, eu fiz essa proposição de trazer alguns para dentro do espetáculo. No sentido de aumentar essa massa humana dentro desse espaço de confinamento e também de dissolver um pouco essa fronteira entre palco e plateia”, explica o diretor. “Então, na metade do espetáculo, os atores param a peça e convidam aqueles que compraram o ingresso ‘experiência’ para entrarem na cena”.
A ‘experiência’ em ‘(Um) Ensaio sobre a Cegueira’ envolve improvisação — afinal, “a força e a natureza das circunstâncias influem muito no léxico”, aponta Saramago — e transforma cada sessão num espetáculo único, segundo o diretor. A categoria prevê locomoção no palco, de olhos vendados, com direcionamentos por meio da voz, realizados pelo elenco profissional. Cada sessão terá 14 convidados.
‘Mar de leite’
Ao contrário do que diz o ditado popular, o pior cego, para Portella, não é aquele que não quer ver, mas o que não pode. “Conhecendo Saramago como um homem de pensamento mais progressista, socialista, que vivia isolado numa ilha da Espanha, eu tenho a impressão que ele quis fazer uma alusão ao processo de imperialismo e colonização quando escreveu sobre a cegueira”, analisa o diretor da nova peça do Galpão.
A crença ganha certo fundamento quando a característica da cegueira descrita no romance é posta. “Era como se estivesse mergulhado dentro de um nevoeiro de luz, uma claridade espessa e opaca, que não lhe deixava ver nada”, descreve um dos personagens no livro. Outro personagem detalha o problema como se a visão tivesse mergulhada num mar de leite.
“Eu posso descrever um milhão de coisas que li enquanto estudava para adaptar o livro. Mas o que mais me convence é que essa cegueira está relacionada aos projetos de poder do homem branco, da supremacia branca, etc. Pra mim, o nome é bem literal e claro. Tem uma parte do ‘não querer olhar’, o ‘cego que não quer ver’, sim. Mas também tem uma parte de não poder ver, de um projeto político da ignorância, da educação da cegueira”, pontua Portella. “Mas o Saramago não formulava muito sobre essa questão”, complementa.
Trilha sonora
Com direção musical assinada pelo violoncelista, produtor e compositor Federico Puppi, ‘(Um) Ensaio sobre a Cegueira’ reforça a parceria do musicista e Portella, amigos há uma década. “A escolha foi quase óbvia. O Federico é um cara que eu confio e acho o modo de criação dele muito interessante. Ele cria a trilha sonora com os atores, com o diretor, na sala de ensaio, e isso pra mim é fundamental”, conta o dramaturgo.
Numa peça sobre cegueira, a audição acaba ganhando destaque. “E ele [Federico] faz um trabalho de engenharia sonora muito detalhada, cheio de camadas. Esse trabalho guiou boa parte da dramaturgia, aliás”, revela.
Fica técnica
Direção e Dramaturgia: Rodrigo Portella
Diretores Assistentes: Georgina Vila Bruch e Paulo André
Direção musical, trilha original e paisagem sonora: Federico Puppi
Cenografia: Marcelo Alvarenga (Play Arquitetura)
Figurino: Gilma Oliveira
Interlocução Dramatúrgica: Bianca Ramoneda
Iluminação: Rodrigo Marçal e Rodrigo Portella
Adereços: Rai Bento
Visagismo: Gabriela Dominguez
Desenho sonoro, programação e mixagem: Fábio Santos
Assistência de direção: Zezinho Mancini
Assistência de figurino: Caroline Manso
Assistência de cenografia: Vinícius Bicalho
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Costuras: Danny Maia
Fotos: Igor Cerqueira e Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Luiz Felipe Fernandes
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Consultoria de Acessibilidade: Oscar Capucho
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Operação de som: Fábio Santos
Técnico de palco: William Bililiu
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Zazá Cypriano
Produção Executiva: Beatriz Radicchi
Direção de Produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Serviço
A peça ‘(Um) Ensaio sobre a Cegueira’ entra em cartaz no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, em 30 de abril. Ao todo, serão realizadas cinco sessões por semana, das quartas-feiras aos domingos, até a última, em 1°de junho.
As sessões de domingo começam às 19h. Todas as outras, às 20h.
Os ingressos estão à venda pelo Sympla por valores entre R$ 40 (meia-entrada) e R$ 80 (inteira).
Às quintas-feiras e domingos o espetáculo conta com interpretação em Libras.
A duração da peça é de 140 minutos, e a classificação é de 16 anos.
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