Clube da Esquina
Entrevistas

Clube da Esquina

Milton Nascimento: “O Clube da Esquina era um retrato do Brasil”

Cantor avalia os motivos que fizeram o disco ser tão notável

Redação – EM Cultura
Jornal Estado de Minas – 18 de março/2012

Muito bem-humorado e lembrando casos que envolveram a produção do disco antológico, Bituca está envolto não só com as comemorações das quatro décadas do Clube da Esquina, como também dos 45 anos de Travessia. “Não sei como a gente vai fazer, mas com certeza temos que trabalhar nesses dois projetos. No caso de Travessia, vamos fazer shows não só no Brasil, como na Europa, América Latina a partir de abril (2012)”, anuncia.

Para Milton, o LP duplo lançado em 1972 é uma verdadeira celebração da amizade, sentimento que sempre norteou sua vida e a dos demais clubistas. Revela que não foi fácil convencer os executivos da Odeon a produzir um disco que, além dele, trazia um compositor até então desconhecido, Lô Borges. Graças a um dos produtores da gravadora, Adail Lessa, o projeto vingou. “O pessoal não queria fazer e o Adail foi lá e disse: ‘Esses meninos não são malucos não. É bom vocês deixarem que eles façam o que quiserem’”, lembra o cantor e compositor, que define o disco como “um retrato do Brasil”. Confira os principais trechos da entrevista.

Na sua opinião, por que o disco é tão notável?

A gente tinha uma turma de músicos, principalmente de BH, que ouvia de tudo e misturava cinema, livro, mil coisas e vários tipos de música, sem preconceito nenhum. O pessoal de Belo Horizonte sempre foi muito aberto às coisas como rock’n’ roll, jazz, bossa nova, samba, e aí foi fácil para a gente reunir o pessoal e fazer o disco. Nessa época, a pessoa mais chegada a mim, em termos de música, era o Lô Borges. Então fui à Odeon e falei com eles que queria fazer um disco duplo com um rapaz que eles não conheciam. E foi um negócio até meio chato, porque eles não queriam deixar. Falaram: “Onde já se viu fazer um disco duplo com uma pessoa que ninguém conhece?”. E eu retruquei: “Tudo bem, se vocês não quiserem, procuro outra gravadora”. Nessa época existia um homem que poucas pessoas conhecem, mas ainda vou escrever algo sobre ele: Adail Lessa (produtor). Ele foi responsável por várias coisas. Por exemplo, a bossa nova. O pessoal da Odeon não queria fazer um disco com João Gilberto, Tom Jobim etc. e ele fazia parte da diretoria e marcou uma gravação com a orquestra de madrugada. Gravaram e aí foi isso que aconteceu: está no mundo inteiro. E com a gente também foi isso. O pessoal não queria fazer e ele foi lá e disse: “Esses meninos não são malucos não. É bom vocês deixarem que eles façam o que quiserem”. Infelizmente ele morreu, mas foi fundamental para muitas coisas, para muita gente.

Você acredita que o disco foi um divisor de águas na carreira dos músicos?

Foi um marco na carreira de todo mundo. Porque, se você for pegar o nome das pessoas que estão ali, é uma loucura. Todo mundo era quase desconhecido, ótimos músicos e em matéria de letras, ninguém estava acostumado a fazer aquilo que estava acontecendo. Então, foi um negócio assim: que eu nem sei denominar. Foi muito forte e está no mundo inteiro. Continua em vários países, o pessoal a fazer comentários, a gravar, a falar, ouvir. Continua sendo um retrato do Brasil. Nos Estados Unidos, Europa, Japão, tem acontecido, desde que saiu o disco, de o pessoal vir a Belo Horizonte para conhecer o Clube da Esquina. Mesmo explicando que não era um clube, que era um lugar numa esquina de duas ruas de Belo Horizonte, em que o pessoal se reunia. Mas eles querem vir para o Brasil e conhecer esse tal Clube da Esquina. Acham que tem uma sede e tal. É engraçado. Nem adianta a gente querer explicar. A rapaziada se reunia ali naquele encontro das ruas e, de repente, se junta para fazer um disco e acontece tudo isso. Então é realmente muito forte!

O que marcou você durante as gravações nos estúdios da Odeon?

O Clube da Esquina não foi feito só com mineiros. Tem o pessoal do Rio, gente do Nordeste, de Minas, claro, a maioria. E quando surgia uma música, de repente, já estava pronto um arranjo ou a gente chamava uma pessoa para cantar, fazer coros, chamava orquestra. Teve uma participação, por exemplo, do maestro Eumir Deodato, que naquela época estava morando nos Estados Unidos. E a gente mandou algumas partituras para ele e ele fez alguns arranjos para o disco. Ou, às vezes, os arranjos surgiam no estúdio mesmo. Então, nem sei que nome se dá a isso. Algo até meio mágico. Totalmente! O pessoal dos outros países se baseia e se inspira muito no meu violão, no meu jeito de fazer música, no jeito de o Toninho Horta tocar e fazer música. Do Beto, do Lô. Então a gente continua influenciando e ensinando coisas para pessoas que a gente pensava que iam ensinar para a gente. Mas, a coisa mais marcante é que naquela época só existiam dois canais de gravação. Aí você vê um disco como aquele. Tem horas que tem quatro vozes minhas, 10 vozes de fulano e orquestra, e quando você conta que foram apenas dois canais de gravação as pessoas ficam maravilhadas. E falam: “Não acreditamos”. Mas acreditam sim (risos). É a coisa mais marcante da gravação desse disco.

O disco foi uma celebração da amizade?

Sem dúvida isso aconteceu. A amizade é algo que norteia a minha vida inteira. Vou falar de mim, mas dos outros também. A minha família é baseada na amizade. Quando era pequeno, ouvia alguns papos dos meus pais, falando que precisavam ajudar alguma pessoa, e estavam sempre com a porta aberta. Geralmente, nessas cidades do interior, as mães não gostam que as crianças vão para a casa dos vizinhos, porque vão sujar, fazer isso e aquilo. E na minha casa era completamente diferente. Meus pais faziam questão de as crianças irem lá para casa. Era muita criança e elas faziam o que quisessem. Comiam chocolate na hora do lanche. E a criançada toda apaixonada pela minha casa, pela minha mãe. Fui criado na amizade. Para mim, a coisa mais importante na vida é a amizade. E o Clube da Esquina é isso.

Qual a importância de Belo Horizonte na sua formação musical?

Em Três Pontas, eu, Wagner Tiso e a nossa turminha ficávamos ouvindo rádios e quando me mudei para BH fiquei conhecendo novos músicos. Ouvia o pessoal de Belo Horizonte tocar e pensava: “Nossa, estou fazendo tudo errado! Vou ter que aprender tudo de novo”. Mas os próprios músicos de Belo Horizonte me falaram: “Não, não mexe nas coisas que você faz porque isso não tem em nenhum lugar do mundo. Ninguém faz isso”. Mais um exemplo da amizade. Ela está sempre presente na minha vida. E eles me dando muita força, os amigos de BH me dando muita força, sempre!

O que você acha dos projetos de resgate e preservação do Clube, incluindo o museu?

Acho isso muito legal. Como os canais do Clube da Esquina estão abertos em vários países, para vários músicos, temos que manter assim. A gente daqui tem que contribuir com isso. Tem um movimento e acho que temos que preservar essa história. Somos amigos até hoje. Eu, por exemplo, tenho feito muitos shows com o Lô e feito músicas com o Beto, o filho do Beto (Gabriel), e com um monte de gente. Aí não tem jeito de o Clube da Esquina parar.

Você como líder do grupo pretende mobilizar os outros músicos para comemorar os 40 anos?

Este ano (2012) faz 45 anos de Travessia e a gente já está com um projeto para sair pelo Brasil e ao mesmo tempo tem os 40 anos do Clube. Não sei como a gente vai fazer, mas com certeza temos que trabalhar nesses dois projetos. No caso de Travessia, vamos fazer muitos shows não só no Brasil, como na Europa, América Latina, a partir de abril.

Lô Borges: “O clima era de fraternidade”

Músico encarou mãe e Exército para gravar disco com Milton Nascimento

Ele teve que enfrentar o Exército e a própria mãe para poder gravar o disco que mudaria os rumos da sua vida. Lô Borges era um adolescente de 19 anos quando foi convidado por Milton Nascimento para assinar junto com ele o LP Clube da Esquina e até hoje não se cansa de agradecer ao amigo e parceiro pelo convite.

“Sou eternamente grato a ele. Costumo dizer que, no mínimo, de três em três anos tenho que agradecer ao Milton por tudo que ele fez por mim”, salienta. Sentado na famosa esquina da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, no Bairro de Santa Tereza, onde deu os primeiros acordes no violão, Lô recorda a experiência mágica da gravação do álbum duplo de 1972 e o que todo aquele processo criativo deixou como legado.

Você começou sua carreira com o pé direito, já que este foi seu primeiro disco. O que ele representou na sua vida?

Foi uma definição do rumo que dei para minha vida. O Milton me convidou para gravar e assinar o álbum com ele e foi uma luta para eu conseguir ir para o Rio. Minha mãe teve que autorizar, porque era ditadura, ela tinha um certo receio, achava que eu corria risco e não foi fácil convencê-la. O fato de o disco ser meu também ajudou, porque, se fosse só uma participação, talvez ela não deixasse. E ainda estava na idade de me apresentar ao Exército. Ia começar a servir e cheguei a ser hostilizado quando comentei que era músico. Contei para o capitão da minha companhia que o Bituca estava me chamando para dividir um álbum com ele. Quando me reapresentei, o capitão perguntou: “Qual é o músico da minha companhia?”. Ele me pegou pelo braço hostilmente e disse: “Você não vai seguir o Exército porque nós não queremos gente da sua espécie aqui dentro, seu comunista, seu esquerdista”. E aí fui praticamente escorraçado do Exército, minha mãe me liberou e finalmente fui gravar o Clube da Esquina no Rio de Janeiro.

E como foi o processo de gravação?

Já saí de Belo Horizonte com o Clube da Esquina bem definido na minha cabeça. Mas disse ao Bituca que só ia ao Rio se pudesse levar um cara que tocava comigo, que tocava Beatles e era da minha banda, The Beavers (Os Castores), porque achava que ele seria muito importante para as minhas músicas. Era o Beto Guedes. Mas nem tudo foram flores para fazer aquele álbum. O Milton travou uma batalha pessoal com a gravadora para poder me colocar no disco, já que eu era praticamente desconhecido. Sou eternamente grato a ele. Costumo dizer que, no mínimo, de três em três anos tenho que agradecer ao Milton por tudo que ele fez por mim. Esse disco mudou a minha vida. Foi muito legal todo o processo. Eu morando com o Bituca, o Beto e o Jacaré, primo do Milton, no Rio de Janeiro. E depois fomos morar numa praia deserta para poder compor. E as coisas iam surgindo. Porque esse disco não teve muito ensaio e nasceram coisas geniais. Vejo como uma verdadeira oficina criativa em todos os aspectos; na música, nas letras. Você pensar que 40 anos depois esse trabalho figura no livro 1.001 álbuns que você deve ouvir antes de morrer é fantástico.

E você ainda teve um outro trabalho muito importante lançado naquele ano, que foi o “disco do tênis” (Lô Borges), não é?

Pois é. Para mim foi uma coisa sensacional. Um começo de carreira iluminado. Foi a duras penas, porque a barra não estava leve. Era ditadura e tudo. O “disco do tênis” foi feito meio na loucura. Eu brinco que ele foi feito igual disco de cantador. Já tinha assinado com a gravadora e não tinha as músicas prontas. Fazia a música de manhã, o Márcio, meu irmão, colocava a letra à tarde e a gente chegava ao estúdio com elas fresquinhas. Eu fiz o Clube no começo do ano e o do tênis no final. Eu era muito menino e foi uma responsabilidade começar de cara gravando com arranjo de Eumir Deodato, orquestra no estúdio, no caso do Clube da Esquina. Eu nem sabia ler partitura naquela época e não podia errar nada. Tinha que ser saudavelmente irresponsável para participar daquilo tudo. Gravar um disco já era uma novidade, um desafio, porque era praticamente ao vivo, e gravar daquele jeito, mais ainda. A partir dali fui sendo conhecido, gravado por gente como a Elis Regina, o Tom Jobim. Tenho muito orgulho de tudo isso.

Você acredita que o disco Clube da Esquina continua influenciando gerações?

O Clube formou e informou várias gerações que fazem música de qualidade. Mesmo depois de 40 anos, a perenidade é impressionante. Vejo nos meus shows, gente de 15, 20 anos de idade cantando O trem azul, Um girassol da cor de seu cabelo, Paisagem da janela. O disco só é forte até hoje porque foi feito com muita verdade. As pessoas se empenharam muito. Agradeço a todos os músicos que contribuíram para fazer aquele álbum: Novelli, Robertinho Silva, Toninho Horta, Luiz Alves e tantos outros. Todo aquele clima de fraternidade e criatividade que imperava. Até hoje, as minhas músicas mais conhecidas são do disco Clube da Esquina. Analiso a minha carreira hoje e vejo que tudo começou com essa história do Clube.

E as comemorações pelos 40 anos? Como andam?

Tem que esperar o aval do Milton. Qualquer comemoração envolvendo o Clube da Esquina tem que partir do Milton, porque ele é o titular da pasta (risos). Se ele fizer o convite, ótimo. A gente vai com certeza. Basta o Bituca estalar os dedos.

Você acha que seria possível fazer um Clube da Esquina 3, apesar de o Milton afirmar que o Angelus já seria esse Clube 3?

Acho que não seria necessário. Os dois Clubes foram suficientes para mostrar muita coisa boa. O Clube 2 projetou a carreira de muita gente, abriu as portas para várias pessoas. E no primeiro também. Todo mundo que participou teve um upgrade na carreira.

E você mantém contato com os integrantes do Clube, continua compondo com eles?

Muito pouco. Tenho contato com Bituca, o Márcio, meu irmão. A gente vai seguindo a vida, tendo a própria carreira, os próprios projetos. Faço coisas com o Márcio, mas hoje meus principais parceiros são o Samuel Rosa – a gente tem feito muita coisa bacana – e a Patrícia Maês (mulher de Lô), que inclusive assina comigo cinco músicas no meu trabalho mais recente, o “Horizonte Vertical”.

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