Sinopse | Poema | Prêmio | Volta

A natureza, geração das coisas que crescem, é substância que possui o princípio do movimento em si mesma e pela própria essência, segundo Aristóteles. Criatura natural entre os seres da natureza, o homem é, dentre eles, o que cria transformando. A arte imita a natureza. A partir da imitação, o homem adquire os seus primeiros conhecimentos e, por seu intermédio, experimenta o prazer. A tendência à imitação, o gosto da harmonia e do ritmo originam entre os homens mais aptos o exercício da poesia.

Bartolomeu Campos de Queirós apresenta-nos Flora e nos empresta intuição e beleza em texto capaz de transmutar o sentimento em palavras germinais de novas significações.

Na mitologia romana, Flora, mulher de Zéfiro, brando vento ocidental que anuncia a primavera, faz desabrochar as flores. Reúne os quatro elementos - água, ar, terra e fogo - no movimento incessante da vida.

Flora, "promessa de florações", é passagem, interseção, soma, contínuo devir de formas novas: "Era como a madrugada. Trazia no corpo a cor da noite somada ao brilho do dia". Noite e dia reúnem-se - "ônix molhado e claridade de sol" - e, no intervalo decorrido da chuva à estiagem, "tinha o seu silêncio quebrado pelo canto dos pássaros, pelo ruído das asas, pelo vento das folhas, pela queda das cachoeiras, pelo rumor dos ventos". "A terra... causa de todas as vidas" acolhe em seu seio provedor as promessas de novas vidas.

"Medianeira entre a penumbra e o diálogo", Flora nos descortina o segredo da gestação. Gestação de novos seres surgidos de sementes que germinam, no presente, as lembranças do passado, desabrochando para o futuro "floresta, árvore, galho, folha, fruto, flor e sempre". Ela nos revela também a possibilidade da poesia, da ação e expressão humanas sempre reinventadas. Cada semente abre possibilidades, "promessas de florações".

A poesia está seminalmente contida na linguagem empregada pelo Autor. Ele nos ensina a empregar a língua como "desenho maleável", "lançando mão do poder real da fantasia". O tecido de letras do alfabeto e expressões do código germinam através de expressões inusitadas a promessa contida em cada semente. Assim, Flora "passava o dia escutando o sol", "pisava leve e humana como a poesia... era mais concreta que os desejos". "Seus olhos inquietavam o pensamento ao pensar no gosto, no perfume, na cor, na forma existente no interior de cada grão". "Flora convertia o seu impulso de cantar em caladas orações vestidas de sussurros e arcanjos". Para ela "cada semente é uma fonte, um desfecho, uma pausa da eternidade".

A vida é fluxo contínuo da natureza, a poesia é a capacidade do homem de se reinventar a cada instante. A poesia é semente, "um bilhete para viagens", "porta para desembaraçadas paisagens". É possibilidade de "deixar vir à tona o milagre do renascimento", "uma esperança esperando para virar verdade".

Lançada a semente na terra úmida, a ação do calor e da luz, o arejamento, a adubação fazem germinar a planta, a nova vida surge do apodrecimento dos elementos precedentes. As "pequenas arcas de tesouros" dormem em "catre macio" e escondem, em seu interior, promessas de renovação.

Este o desafio do poeta: "interrogar a possibilidade do infinito", reconfigurar a expressão do mundo, delinear uma aurora possível a partir de um mundo caduco, desvelando uma nova forma de vida e liberdade descobrindo que "nascer só vale a pena para bem viver".

Maria Eugênia Dias de Oliveira