Eugênio Barba e o Teatro Antropológico, parte 1
Teatro Contemporâneo

Eugênio Barba e o Teatro Antropológico, parte 1

Teatro  Contemporâneo | Eugênio Barba e o Teatro Antropológico

Texto: Cristina Tolentino
cristolenttino@gmail.com

 

Biografia de Eugênio Barba

Eugênio Barba

Sua família é originária de Gallipoli (província de Lecce). Forma-se na academia militar de Napoli em 1954. Neste mesmo ano se transfere para a Noruega para trabalhar como marinheiro. Se forma em literatura francesa em Oslo e história das religiões nórdicas.

Em 1961 se muda para Varsóvia, Polônia, para estudar direção teatral na Escola Teatral do Estado, que abandona no ano seguinte para unir-se a Jerzy Grotowski, no Teatr 13 Rzedow de Opole. Barba acompanha Grotowski por três anos.

Em 1963 viaja a Índia, onde tem seu primeiro encontro com o Kathakali. Seu primeiro livro Grotowski alla ricerca del Teatro Perduto – na procura do teatro perdido, foi publicado na Itália e na Hungria em 1965.

Quando volta a Oslo, em 1964, tinha a intenção de tornar-se um diretor teatral profissional, mas, como era estrangeiro, não teve muito sucesso inicialmente. Assim decide iniciar um teatro particular, com jovens que não haviam sido admitidos na Escola Teatral do Estado de Oslo e cria o Odin Teatret em 1 de outubro de 1964.

A primeira produção do Odin Teatret foi Ornitofilene, do autor norueguês Jens Bjørneboe, foi apresentada na Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca.

Depois da apresentação na Dinamarca o grupo foi convidado pela prefeitura de Holstebro, uma pequena cidade na costa noroeste, a criar um laboratório teatral. Ao Odin foi oferecida uma velha fábrica e uma pequena soma de dinheiro para que se estabelecesse autonomamente. Hostelbro se torna a sede do Odin Teatret.

Introdução

Eugênio Barba fundou e é diretor do Odin Teatret desde 1964, após participar durante 03 anos do Teatro das 13 filas, fundado por Grotowski em Opole (1960-1963) e de uma viagem à Índia, onde descobre o Teatro-dança Kathakali, ainda bem desconhecido no Ocidente.

Após esse período ele volta a Oslo e por ser estrangeiro (italiano) não consegue arrumar trabalho no teatro profissional. Com alguns dos aspirantes a atores reprovados na Escola Estadual de Teatro de Oslo, ele funda o Odin Teatret, em 1964.

Barba e os atores trabalhavam durante o dia para garantir o seu sustento e treinavam durante as noites em locais temporários: uma sala da universidade, o hall do clube dos arquitetos e em um refúgio antiaéreo impregnado de umidade.

Dos doze atores que começaram, restaram quatro. Um dos atores-fundadores do Odin, Torgeir Werthal, lembra este período: “Lembro-me deste período como um pesadelo físico. Quando comecei, eu era rígido e fraco. Demorei quase seis meses para aprender aqueles exercícios mais simples que a maioria de nossos estudantes aprendem agora em 15 dias”.

Else Marie Laukvik, também fundador do grupo, diz: “Havia momentos de dúvida. Algumas vezes era embaraçoso ver as reações daqueles que nos perguntavam o que fazíamos: teatro em um bunker? Só quatro? Rejeitados pela escola de teatro? Dirigidos por um italiano da Polônia? Sem cenário? E o público? Alguns achavam que éramos parasitas da sociedade, sem fazer nada útil ou, pior ainda, nada aceitável”.

O primeiro espetáculo do grupo aconteceu após um ano de trabalho: “Ornitofilene”, do norueguês Jens Bjurneboe. A dificuldade em alugar um local para atuar e para encontrar pessoas interessadas em assistir ao espetáculo de um grupo que não é reconhecido, torna impossível a sobrevivência do mesmo. Das cinqüenta apresentações previstas de “Ornitofilene”, somente dez foram realizadas.

ensaios Eugênio Barba

Ensaios de Ornitofilene num refúgio antiaéreo de Oslo (Else Marie Laukvik, Anne Trine Grimnes).

Neste momento crítico, o grupo recebe um convite para mudar-se para a cidade de Holstebro, na Dinamarca, em 1966, onde permanece até hoje.

Em Holstebro, cria o Nordisk Teaterlaboratorium, que em 1971 é reconhecido pelo Ministério da Cultura dinamarquês como uma escola experimental de teatro, permitindo-lhe expandir suas atividades pedagógicas e de investigação.

De uma pequena e desconhecida entidade, o Nordisk Teaterlaboratorium se transforma em uma das influências mais fortes no desenvolvimento do teatro contemporâneo.

Em 1979, funda o ISTA, International School of Teatre Antropology, “um centro de intercâmbio de técnicas teatrais e investigações no campo da antropologia teatral – estudo do homem em situação de representação, com ênfase nas técnicas do ator. Reúne especialistas de teatro, sociólogos, antropólogos e mestres de várias tradições teatrais.”

Para compreender o fazer teatral de Eugênio Barba é importante entender a sua visão não só de teatro, mas, principalmente, do ser humano que traz na sua essência, um elemento que ele julga essencial no artista: a rebeldia.

É esta rebeldia que vai construir as bases do teatro de Barba, a começar pela própria origem do seu grupo: atores não aprovados na Escola Estadual de Teatro de Oslo.

A seguir, algumas colocações a respeito daquilo que é a essência da experiência teatral para Barba: Teatro e Revolução, Teatro Eurasiano, Terceiro Teatro, Teatro Antropológico.

Teatro e Revolução

Ensaio Eugênio barba

Kaspar (Torgeir Wethal) sobre o trono, como um toten em Kaspariana (1967-1968)

“O valor do teatro não reside na sua função sociológica, difusa e indefinível” (…) “mas somente mediante uma renovação contínua de nossa atitude pessoal diante da vida se determinará um novo enfoque de nossa arte”, diz Barba.

É o processo que transforma o artista, o modo como ele encara cotidianamente o seu trabalho. Para Barba, somente os jovens que não se contentam com soluções superficiais é que conseguem realizar essa experiência de transformação.

Ele diz: “o nosso ofício é a possibilidade de mudar a nós mesmos e desse modo mudar a sociedade” (…) “não é preciso perguntar-se: o que significa o teatro para o povo? Esta é uma resposta demagógica e estéril. É preciso perguntar-se: o que significa o teatro para mim?

A resposta transformada em ação será a revolução do teatro.” Para Barba e muitos outros mestres de teatro, o teatro não é um fim em si mesmo, mas um meio de nos tornarmos seres humanos melhores. Só assim realizaremos revoluções profundas e duradouras.

Teatro Eurasiano

espetaculo Eugênio Barba

Espetáculo de rua “Sardenha”
Tage Larsen, 1975

“O aprofundar da própria identidade profissional implica a superação etnocêntrica, até chegar ao descobrimento de nosso centro na tradição das tradições”. Barba nos explica que buscar as nossas raízes não implica um vínculo que vai nos amarrar em algum lugar, que vai nos fechar, mas um ethos que vai nos permitir mudar de lugar: “representa a força que nos faz mudar de horizontes, precisamente porque nos mantemos enraizados a um centro”.

Ele diz que esta força só acontece em duas condições:

  • a necessidade de definir para si mesmo sua própria tradição.
  • a capacidade de inscrever esta tradição em um contexto que a conecta com diversas tradições. Ao criar o ISTA (Escola Internacional de Antropologia), Barba busca justamente possibilitar a troca entre estas tradições, busca reunir mestres do teatro oriental e do teatro ocidental, no sentido de encontrar um substrato comum na arte do ator – “o terreno da pré-expressividade”. Princípios similares que, apesar das diferentes formulações, vão resultar numa maneira de pensar e permitir o diálogo entre as pessoas de teatro vindas das mais diferentes tradições.

Terceiro Teatro: a herança de nós para nós mesmos

espetáculo de rua, Eugenio Barba

Quem é você?” “Um ator”.
“Sim, mas quem é você?”
Espetáculo de rua, Perú, 1978

espetáculo de rua, eugênio Barba

“Troca na Colômbia”, 1984.
O Odin Teatret junto com um grupo de meninos de rua.

“O Terceiro Teatro indica um modo de modelar os próprios “porquês”. Não é um estilo teatral, nem uma aliança entre os grupos, tampouco é um movimento ou corporação internacional, nem uma escola, nem uma estética ou uma técnica.”

Barba diz que Louis Jouvet fez uma afirmação que ressoou como um enigma: “Existe uma herança de nós para nós mesmos.”

A partir desta afirmação ele levanta algumas perguntas essenciais:

  • ainda possuo em minhas mãos a herança que eu mesmo construí?
  • conheço ainda seu valor ou também isto foi corroído pelo tempo, pela prática da profissão, pelo retorno ao centro esmagado do planeta teatral?

Ele diz que este enigma e estas perguntas pertencem ao “terceiro teatro”.

“Quando Jouvet falava da herança de nós para nós mesmos, reassumia o sentido de muitas histórias que haviam mudado o espírito do teatro no século XX. Eram histórias de pessoas, não de instituições. Eram histórias de estrangeiros no teatro. Quem são estes estrangeiros?

Frequentemente em nossos discursos surgem nomes de “mestres” e “pais fundadores”: Craig, Stanislawski, Copeau, Brecht, Artaud, Meyerhold, Grotowski e alguns poucos mais.” Barba nos fala que todos estes mestres entraram no teatro levando uma “nostalgia” pessoal, diferente para cada um deles: a religião, a anarquia, a revolução, o tempo do homem novo e uma inextinguível rebelião individual.

Eles construíram a partir desta nostalgia e também, das deficiências: “Stanislawski não conseguia se aceitar como ator; Artaud não conseguia concretizar suas visões; Brecht não sabia viver sem uma ortodoxia, mas ao mesmo tempo não conseguia adequar sua prática artística carregada de individualismo e anarquia a essa ortodoxia.”

Construíram a partir daí um sentido autônomo para a ação de fazer teatro. Todos estes mestres, quando se arriscaram em um terreno desconhecido, ainda não possuíam fama suficiente para se resguardarem, mesmo assim resistiram à força centrípeta do planeta teatral.

Resistiram à tentação de “estabilidade”, de “segurança” que o centro do planeta teatral parece assegurar. Inventar o sentido da própria ação de fazer teatro implica, segundo Barba, “vontade e capacidade de distanciar-se dos valores no auge do centro do planeta teatral e força necessária para penetrar na órbita dos anéis.”

É esta força que manteve e mantém vivos os grupos teatrais que, com sua longevidade, nos faz refletir sobre a busca de sentido, ou seja, o descobrimento pessoal do ofício. E Barba nos diz que a eficácia desse ofício transforma “uma condição em uma vocação pessoal e aos olhos dos demais, em um destino que é uma herança”.

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