Tadeusz Kantor, parte 2
Teatro Contemporâneo

Tadeusz Kantor, parte 2

Teatro  Contemporâneo | Várias fases do teatro de Tadeusz Kantor

Fases do teatro

Seu teatro passou por várias fases. A fase do teatro Independente; a fase do Cricot 2 e o Teatro Informal, ligados “a pintura”; a fase do Teatro Zero, onde a ênfase era o objeto; Teatro happening; fase do Teatro da Morte; e finalmente, a fase do teatro espiritual.

Em cada fase podemos perceber o caminho desse dramaturgo/encenador, sua relação com o texto, com o ator, com os objetos, com o espaço cênico, com o espectador.

Teatro Independente (1942)

Teatro Independente foi organizado por Kantor em 1942, com um grupo de pintores jovens. Um teatro clandestino e experimental, durante a ocupação nazista e onde ele dirigiu Balladyna de Juliusz Slowacki (1942) e O Retorno de Ulisses de Stanislow Wyspianski (1944).

“O Retorno de Ulisses do Sítio de Estalingrado.
O abstracionismo, que existiu na Polônia até o inicio da II Guerra Mundial, desapareceu no período do genocídio em massa. […]
A arte perdeu seu poder.
A re-produção estética perdeu seu poder.
O ódio de um ser humano apoiado por outras bestas humanas amaldiçoou a a r t e. Só tínhamos força para agarrar o que estava mais próximo,
O Objeto Real
e chamá-lo de obra de arte!
No entanto, era um objeto p o b r e, incapaz de realizar qualquer função na vida real, um objeto a ser descartado.
Um objeto que foi desprovido de uma função vital que o salvaria.
Um objeto despojado, sem função, a r t í s t i c o! […]
Uma cadeira de cozinha
Um objeto, que foi esvaziado de qualquer função vital, veio à tona pela primeira vez na história.
Este objeto era vazio.
Tinha que justificar sua existência a si mesmo e não às coisas que o cercavam e lhe eram estranhas.
[E o fazendo, o objeto] revelava sua própria existência.
E quando sua função era imposta a ele, essa ação era vista como se isso tivesse acontecido pela primeira vez desde o momento da criação”.

Em O Retorno de UlissesPenélope, sentada em uma cadeira de cozinha, representou o ato de estar “sentada” como um ato humano acontecendo pela primeira vez. O objeto [físico] adquiriu sua função histórica, filosófica e artística.

A peça O Retorno de Ulisses foi encenada não em um teatro, mas sim em uma sala que estava destruída. “Havia guerra e havia milhares de salas assim. Todas se pareciam: tijolos sem reboco por trás de uma camada de tinta, gesso caindo do teto, piso faltando tacos, pacotes abandonados cobertos de poeira, entulho espalhado por todos os lados, pranchas remanescentes de um convés de navio foram dispensadas ao horizonte dessa decoração, um tambor de revólver apoiado num monte de pedaços de ferro, um megafone militar pendurado por um cabo de aço enferrujado. A figura inclinada de um soldado com capacete usando um sobretudo surrado [de um soldado alemão] em pé contra a parede. Nesse dia, seis de junho de 1944, ele se tornou parte dessa sala”.

Por: (Michal Kobialka)

Credo (Manifesto Teatro Independente)

“Uma obra de teatro não se olha como se olha um quadro pelas emoções estéticas que procura: é vivenciada em concreto.
Não tenho nenhum tubo estético
Não me sinto sujeito aos tempos passados,
Não os conheço e não me interessam.
Só me sinto comprometido com esta época em que vivo e com as pessoas que vivem ao meu lado.
Creio que um todo pode conter ao mesmo tempo barbaridade e sutileza, tragédia e comédia, que um todo nasce de contrastes e quanto mais importantes são esses contrastes, mais esse todo é palpável, concreto e vivo”.

Teatro Cricot 2 e o Teatro Informal (1961)

O Teatro Cricot 2 propõe a idéia de um teatro que se realize como OBRA DE ARTE. Não unicamente um teatro em busca de valores plásticos, mas de atores desejosos de encontrar, no contexto com pintores e poetas de vanguardas, uma renovação total do método cênico.

O Teatro Cricot 2 mostrou as possibilidades da liberdade na arte. As possibilidades de sua grande aventura, de seu gosto pelo absurdo e sua abertura para o impossível.

O Teatro Cricot 2- trocou as relações entre o palco e o público. Um público instalado ao redor de mesas de café; o jazz e a dança constituíam uma realidade autêntica, viva, oposta a um auditório passivo, neutro, estacionado em fileiras de cadeiras dos teatros oficiais.

Essa realidade foi prolongada para a rua. Associada com os acontecimentos da rua esta realidade queria reagir e retrucar rapidamente, onde uma opinião pública instantânea se impunha.

“Há que se usar meios de expressão muito fortes, provocativos, contestáveis. As metamorfoses do ator, esse ato essencial do teatro, longe de camuflar-se, se exibem abertamente, se expõe.” (Kantor) Maquiagem exagerada, formas de expressão tomadas do circo, inversões e perversões de uma situação escândalo, surpresa, choque, pronúncia artificial e afetada, associações contrárias ao sentido comum.

Situações cênicas insólitas, contrárias à lógica da vida de cada dia e regidas por uma lógica autônoma. Estados emocionais normais se transformam em angustiosas hipertrofias que alcançam um grau de crueldade, de sadismo, de espasmo, de voluptuosidade, de delírio febril, de agonia. Por sua insólita temperatura, estes estados biológicos perdem toda relação com a vida prática e transformam-se em material de arte.

El Armário

El Armário

El Pulpo, Na Pequena Granja e El Armário são peças encenadas nesta fase.
No programa do espetáculo de El Armário, havia o seguinte manifesto:

“O teatro não é um aparato de reprodução literária.
O teatro possui sua própria realidade autônoma.
O texto dramático não é mais que um elemento El Armário encontrado, prévio, fechado. É um corpo estranho na realidade que se recria: a representação.
…objeto, movimento, som – sem intenção de ilustração recíproca, de interpretação, de explicação.

A integração destes elementos se faz espontaneamente, segundo o princípio do “acaso” e não é explicável racionalmente.
O circo é assim. Nele encontrará o teatro, sua força vital, seu princípio e sua purificação. O Circo atua de maneira desinteressada, arranca todas as camuflagens, as dignidades e o prestígio.”

El loco e la monja (1963)

El Armário

Teatro Zero (1963)

A realização do impossível é a suprema fascinação da arte e seu mais profundo segredo. Mais que um processo, é um ato da imaginação, uma decisão violenta, espontânea, quase desesperada frente à possibilidade súbita, absurda, que escapa aos nossos sentidos.

Tadeusz Kantor diz que “reduzir a Zero” a prática cotidiana significa negação e destruição. Em arte, pode levar a resultado inverso. Reduzir a zero, nivelar, aniquilar fenômenos, sucessos, acidentes, é tirar o peso das práticas cotidianas, permitindo que se transformem em matéria cênica, livre de tomar forma.

Teatro Happening (1967)

Fazer surgir suas possibilidades e atividades “inatas”, “primárias”, criar uma zona de “preexistência” do ator que, todavia, não está ocupada pelo universo ilusório do texto. Como diz Kantor: “Quero que a realidade que o texto reivindica não se constitua fácil e superficialmente, senão que se una indivisivelmente com essa pré-existência (pré-realidade) do ator e que o cenário esteja arraigado nele e dele surja.” O ator não representa nenhum papel, não cria nenhuma personagem, não o imita. Longe de ser a cópia ou reprodução fiel de seu papel, o ator o assume, consciente de seu destino e de sua situação.

performer Tadeusz

Esse ponto de vista expressa os princípios que acender as atividades do tipo happening. “Tomo previamente a realidade, os fenômenos e os objetos mais elementares, os que constituem a “massa” e a “pasta” de nossa vida de todos os dias, me sirvo deles, jogo com eles, tiro-lhes sua função e sua finalidade, desarmo-os, deixando-os levar uma existência autônoma, dilatar-se e desenrolar-se livremente”.

Um happening de autoria de Tadeusz Kantor:
“Pequeno local escuro”
Em todo o piso estão espalhadas massas de diários. Os diários estão dependurados em cordas como roupa, desde o teto até o solo, sobre o solo, em desordem. Pilhas de diários. No meio, uma banheira de ferro. Corre água fervendo, molha os montes de diários. Ruído de água, baforadas de vapor, nuvens inteiras de vapor. Diante da mesa uma mulher gorda passa os diários molhados. Joga baldes de água – a água corre por todas as partes, baforadas de vapor.

A mulher gorda molha os diários na banheira, passa os diários, grita, soletra, abre muito a boca, sílabas, vogais, consoantes, todo o alfabeto abc… números 1,2,3,4… as notas de solfejo dó, ré, mi… grita, joga água, canta, passa, baforadas de vapor.

Um alto falante, ruído confuso, entrecortado, informações, notícias políticas, locais, esportivas, criminais, jurídicas, previsão do tempo, enterros, casamentos, nascimentos, investigações policiais, arte. Cada vez mais vapor e gritos da gorda analfabeta.

Wielopole-Wielopole

Wielopole-Wielopole

Teatro da Morte (1975)

O Teatro da Morte é uma ruptura com as etapas precedentes. Kantor descobre que nada expressa melhor a vida do que a ausência da vida. A morte se torna o tema central de seus últimos espetáculos: “A classe morta”, “Wielopole-Wielopole”, “Que morram os artistas”, “Aqui não volto mais” e “Hoje é meu aniversário”.

Algumas reflexões (trechos do manifesto) de Tadeusz Kantor sobre o teatro no final do séc. XIX, início do séc. XX, para um maior entendimento do Teatro da Morte.

1 – Craig afirma: “A marionete tem que voltar; o ator vivo deve desaparecer. O homem, criado pela natureza é uma ingerência estranha na estrutura abstrata de uma obra de arte. De acordo com a estética simbolista, Craig considerava o homem, submetido a paixões diversas, a emoções incontroláveis, como um elemento absolutamente estranha à natureza homogenia e à estrutura de uma obra de arte, como um elemento destruidor do caráter fundamental desta.

2 – Da mística romântica dos manequins e criações artificiais do homem do séc. XIX ao racionalismo abstrato do séc. XX.

Ao final do séc. XIX e início do séc. XX, assistimos a aparição da fé nas forças misteriosas do movimento mecânico que buscava superar em perfeição e implacabilidade ao tão vulnerável organismo humano. É a ciência ficção da época, na qual um cérebro humano demoníaco criava o homem artificial. Isto significava simultaneamente uma súbita crise de confiança com respeito à natureza, aos campos de atividade dos homens que lhe estão intimamente unidos.

Um movimento racionalista sempre mais afastado da natureza começa a desenrolar-se. Um mundo sem objeto, o construtivismo, o funcionalismo, o maquinismo, a abstração e o visualismo purista que reconhece simplesmente a “presença física” de uma obra de arte.

3 – O dadaísmo, ao introduzir a velocidade prévia, destrói os conceitos de homogeneidade e coerência de uma obra de arte, postulados pelo simbolismo e por Craig. Voltemos à marionete de Craig. Sua ideia de substituir um ator vivo por um manequim, uma criação artificial e mecânica, em nome da conservação perfeita da homogeneidade e da coerência da obra de arte, já não está em moda atualmente.

Experiências anteriores, que destruíram a homogeneidade da estrutura de uma obra de arte ao introduzir nela, elementos “estranhos”, por meio de colagens e encaixes; o reconhecimento pleno do papel do acaso; a localização da obra de arte na estreita fronteira entre “realidade da vida” e “ficção artística” – tudo isto mostrou que foram insignificantes os escrúpulos do princípio do século, do período do “simbolismo” e da “Arte Noveau”.

Cada vez com mais força, se me impõe a convicção de que o conceito de vida não pode reintroduzir-se na arte mais que pela ausência de vida, no sentido convencional (outra vez Craig e os simbolistas). Interessei-me pela natureza dos manequins. O manequim da minha peça “A Galinha de Água” (1967) e os manequins de “Os Sapateiros” (1970), tinham um papel muito específico: constituíam uma espécie de prolongamento imaterial, algo assim como um órgão complementar do ator que era seu “proprietário”. Quando os utilizei em grande número em “Balladyna”, de Slowacki, constituíam os Duplos dos personagens vivos, como se estivessem dotados de uma consciência superior. Esses manequins já estavam visivelmente marcados pelo selo da Morte.”

Não penso que um manequim possa substituir, como queriam Kleist e Craig, o ator vivo. Seria fácil e por demais ingênuo. Esforço-me por determinar os motivos e o destino dessa entidade insólita que surgiu de maneira imprevista em meus pensamentos e em minhas ideias. Sua aparição confirma a convicção cada vez mais poderosa, de que a vida só pode ser expressada na arte por meio da falta de vida e do recurso à morte, através das aparências, a vacuidade, a ausência de toda mensagem. Em meu teatro, um manequim deve transformar-se em um modelo que encarne e transmita um profundo sentimento da MORTE e a condição dos mortos – um modelo para o ator vivo”.

Kantor toma distância em relação às conhecidas soluções que Craig ofereceu para o destino do ator: “já que o momento em que o ator apareceu pela primeira vez diante de um auditório me parece, muito pelo contrário, que é um momento revolucionário e de vanguarda… do círculo comum dos costumes e ritos religiosos, das cerimônias e atividades lúdicas, saiu

Alguém, Alguém que acabava de tomar uma temerária decisão: a de separar-se da comunidade cultural. Seus motivos não eram nem o orgulho, nem o desejo de atrair sobre si mesmo a atenção de todos. Ele veio como um rebelde, um herético, livre e trágico, por haver ousado ficar só com sua sorte e seu destino. Se acrescentarmos “e com seu papel”, teremos diante de nós o ATOR. É seguro que esse ato, terá sido julgado como uma traição às tradições antigas e às práticas do culto. O ator foi relegado pela sociedade.

Não só teve inimigos ferozes, como admiradores fanáticos. Vergonha e glória conjugados. Frente à comunidade levantou-se um HOMEM, exatamente igual a cada um dessa comunidade e, ao mesmo tempo, infinitamente distante, terrivelmente estranho, como que habitado pela morte. Igual à luz cegadora de um relâmpago, veio de repente a imagem do Homem, como se o vissem pela primeira vez, como se acabassem de ver-se a si mesmo. Foi, com certeza, uma comoção, que se pode qualificar de metafísica.

Foi dos espaços da Morte, que surgiu esse Manifesto Revelador e que provocou no público, essa COMOÇÃO METAFÍSICA. Os meios e a arte desse homem, o ATOR, se relacionam também com a morte, com sua beleza trágica e horrenda”.

Kantor diz que devemos devolver à relação espectador/ator, sua significação essencial. Devemos fazer renascer esse impacto original do instante em que um homem (ator) apareceu pela primeira vez frente a outros homens (espectadores), exatamente igual a cada um deles e, ao mesmo tempo, infinitamente estranho.

“Plantaremos”, diz Kantor, “os limites desta fronteira que se chama a condição da morte, porque constitui o ponto de referência mais avançado, e não amenizado por nenhum conformismo sobre a condição do artista e da arte. Só os mortos se fazem perceptíveis (para os vivos) e obtém assim, por esse preço, o mais elevado, sua singularidade, sua silhueta resplandecente, quase como no circo.”

A Classe Morta (Roteiro, Espaço, Personagens, Advertência)

A seguir, o roteiro, o espaço, os personagens e a advertência de Kantor a respeito de “A Classe Morta”:

A Classe Morta (roteiro):

Parte 1

Índice:
Ilusão
Orações mudas! Dedos.
Saída súbita.
Grande entrada.
Desfile.
Infância morta.
Regresso dos despojos.
Lição sobre Salomão.
As últimas ilusões. Grandes brindes.
Lição noturna.
Passeios noturnos do velho da bicicleta com criança.
Prostituta sonâmbula.
Velho do W.C.
Mulher em uma janela.
Alucinações históricas.
Soldado da primeira guerra mundial.
Deveres fonéticos.
Fazer trejeitos, macaquices.
Sinos, parada.
Entrada da mulher de limpeza.
Zelador como um pretérito perfeito.
Voz.
Foge da mulher da limpeza.
Máquina familiar.
Berço mecânico.
Grande limpeza da primavera.
Ensaio de uma morte no circo.
Os acontecimentos importantes se perdem nos sonhos em curso.
Lição sobre Prometeu.
Incidente com um salto.
Declinação de dedos.
Aparência de êxito.
Assassino secreto no banho.
Explicações complicadas.
Queixas escolares.
Mulher em uma janela.
Excursão de primavera.

Parte 2

Enterro com grande pompa.
Dias das almas prolongado ao máximo.
Orgia.
Orgia simultânea.
Robson Colonial da guerra histórica.
Mulher em uma janela.
Ensaio da última corrida.

Parte 3

Canção de berço.
Diálogo mudo.
Conserto de um cadáver.
Ação extravagante da mulher do berço.
Comportamento chocante do velho do banho.
O velho aturdido da bicicleta do menino vai em sua bicicleta saudando a todos, desde então, seguirá saudando na bicicleta e saudando.
Adulações repugnantes.
O velho surdo. Traz notícias assombrosas!
Infinidade, limpeza das orelhas, corrida injustificada do velho surdo que, desde então, seguirá correndo sem fim e sem objetivo.

Dois cadáveres nus, vítimas do velho dos banhos dão um ataque de apoplexia, o velho dos banhos cai morto em companhia de seu camarada defunto e seguem caindo e levantando eternamente, um por vez.
O consertador do cadáver continua.
Cortejo fúnebre do soldado da primeira guerra mundial.
Vacilação da mulher do berço.
Desde então, repetirão alternadamente, seus gestos cada vez mais vazios e insensatos.
Desaparecimento despercebido da morte/mulher da limpeza, da prostituta sonâmbula.
Os velhos jogam cartas.
Seguirão jogando por toda a eternidade, o zelador entra na eternidade com seu hino nacional austríaco.

O teatro dos autômatos continua: todos repetem os gestos interrompidos que não terminarão jamais.
A mulher da janela segue olhando fixamente.

Uma sala de aula (O Espaço)

Surgida do fundo da nossa memória, em alguma parte, em um canto distante.
Algumas fileiras de pobres bancos escolares de madeira.
Livros secos que se desfazem em pó.
Em dois cantos, a recordação de castigos recebidos há muito e de figuras geométricas desenhadas com giz no quadro negro.
O banheiro da escola onde se fez a aprendizagem das primeiras liberdades.
Os alunos, velhos desvairados à beira da queda, e os ausentes… levantam a mão em um gesto de todos conhecido e ficam assim imóveis, pedindo algo. Um último algo.
Saem… a classe se esvazia.
E de repente todos voltam…
Começa, então, o último jogo da ilusão…
A grande entrada dos atores…
Todos levam crianças pequenas (bonecos) como pequenos cadáveres… alguns bonecos balançam inertes, outros aferrados em um movimento desesperado, suspendidos, arrastando-se como se fossem o remorso da consciência, amarrados aos pés dos atores… criaturas humanas que exibem sem vergonha os segredos do passado… com as excrescências de sua própria infância.

(Personagens) Dramáticos da Classe Morta

MULHER DA LIMPEZA: velha primitiva executa sem cessar os gestos reais de sua função. Sua futilidade no processo de desintegração da Classe Morta sugere, de maneira deslumbrante, quase à maneira do circo, a natureza transitória de todas as coisas. Estas funções, as mais baixas, deslizam-se dos objetos às pessoas, essa regra dos corpos revela as regiões mais distantes da mulher da limpeza-morte.

Sua metamorfose final (uma horrível matrona de bordel) traz as ideias mais distantes em uma reconciliação não comprometedora senão humana: morte, circo, putrefação, sexo, artifício, degradação, desintegração, segunda categoria. A mulher da limpeza lê “as últimas novidades… 1914… a declaração da ª guerra mundial… o assassinato do príncipe herdeiro da Áustria em Sarajevo. O zelador canta o Hino Nacional austríaco “Ó Deus, vem em ajuda de nosso imperador”…

O ZELADOR: pessoa da classe “mais baixa”, inseparável da classe da escola, em quem aflui toda a melancolia do tempo pretérito-perfeito, já que estará sentado em sua cadeira para a eternidade.

A MULHER EM UMA JANELA: a janela é um objeto extraordinário, que nos separa do mundo, “do outro lado”, do “desconhecido”… da morte.
O rosto por detrás da janela deseja absolutamente evocar algo, deseja ver algo a todo custo. Em um sentimento de angústia absoluto, a mulher olha tudo o que passa ao redor dela, e seu comentário incessante se faz cada vez mais maligno e venenoso; se transforma em fúria e suas incitações líricas para a organização de um pic-nic de primavera terminam em um frenesi de amor e de morte.

O VELHO DOS BANHOS: está sentado como antes, na privada. Nesse lugar em que a sociedade se equipara com a liberdade. Está sentado de maneira indecente, de cavalinho e submerso em contas que nunca terminam (talvez fosse um pequeno comerciante em uma pequena cidade). Com medo e dor prossegue suas disputas não claramente definidas com Deus… sobre o escandaloso Monte Sinai.

O VELHO DE BICICLETA DE CRIANÇA: não quer separar-se de sua pequena bicicleta, lamentável joguete de infância amoldado… sem cessar realiza passeios noturnos nela, porém o lugar vai diminuindo curiosamente até se tornar uma classe de escola; dá volta ao redor dos bancos e não é ele quem está sentado nesse veículo insólito, senão uma criança morta com os braços estendidos… tudo isto sucede durante a “lição noturna e no sonho”.

UMA PROSTITUTA SONÂMBULA: cometendo notórios excessos enquanto estava, todavia, na escola… Age como se fosse um manequim em uma vitrine, um manequim libertino, depravado…não se sabe se seus sonhos realizarão mais tarde… agora, neste sonho da classe morta, faz seu truque indecente ao redor dos bancos, com gestos obscenos de mostrar os peitos.

UMA MULHER DO BERÇO MECÂNICO: Umas “boas travessuras” feitas na escola, incidentes lúgubres cuidadosamente colocados a nu, sobre os quais se passa um silêncio incômodo, porém reconhecidos como as formas inferiores de desenvolvimento pelos adultos.

São verdadeiramente a matéria primária e original da vida. Seu desinteresse e sua ineficácia para a vida os levam perto das regiões da arte. Contêm a nostalgia dos sonhos e a extremidade das últimas coisas. Suas execuções vitais, “maduras”, são uma horrível degeneração sancionada.

A mulher do berço mecânico se transforma em objeto de uma brincadeira cruel de toda a classe; os outros a perseguem, a atrapalham e a colocam em uma máquina especial que no inventário figura abaixo a rubrica “Máquina Familiar.”
A “máquina familiar” se manipula à mão e provoca a abertura e o fechamento mecânico das pernas da culpada. Não há dúvida que é o ritual da peça no mundo.

A MULHER DA LIMPEZA/MORTE: traz um berço mecânico que se parece um pequeno ataúde. Conseqüência já compreensível. O berço mecânico embala duas balas de madeira que fazem um ruído seco desapiedado. É a brincadeira da brutal mulher da limpeza – nascimento e morte – dois sistemas complementares.

Não é surpreendente que a mesma mulher do berço mecânico submetida a outras “cerimônias estranhas”, cante uma canção de berço que é um grito desesperado.

A Classe Morta (Advertências)

Os personagens da “Classe Morta” são indivíduos ambíguos.
Como se estivessem sido construídos de peças diversas e pedaços sobrados de sua infância, de acasos sofridos em suas vidas anteriores, de seus sonhos e paixões, não deixam de desintegrar-se e transformar-se nesse movimento e, esse elemento teatral, abrindo-se implacavelmente um caminho para sua formação final, que se esfria rápida e inelutavelmente e que deve conter toda sua felicidade e todo seu sofrimento. Toda a memória da classe morta.

Nessas anotações há brancos e numerosas passagens faltantes; devemos recorrer à nossa imaginação e intuição; talvez não se represente nenhuma obra; e inclusive, se existe a busca da criação, esta é de pouca importância frente ao jogo que se está jogando nesse Teatro da Morte.

Esta criação de ilusões, esta improvisação negligente, este aspecto superficial, essas frases truncadas, essas ações quebradas que não são mais que intenções, toda essa mistificação, como se representasse verdadeiramente uma obra, essa “futilidade” são as únicas que podem convencer-nos de que temos essa experiência e esse sentido do grande vazio e das fronteiras extremas da morte.

Seria uma brincadeira injustificada, tratar de encontrar esses fragmentos faltantes, necessários para um “conhecimento” completo do tema e da intriga desta obra.

Seria o método mais simples de destruir uma esfera tão importante como o “sentimento.”
É por isso que não é recomendado conhecer o conteúdo da obra de Witkiewicz “Tumor Cerebral” – é esta obra que serviu aos fins descritos acima.

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